A Arte Poética de Paulo Bomfim
Alexandre Blok anotava no começo do século: Todo poema pe um véu estendido sobre a ponta de algumas palavras. Essas palavras brilham como estrelas. É por elas que existe poema”. Foi lendo Paulo Bomfim que experimentei empiricamente essa verdade: certas palavras lucilam no poema, acenam, estreitam-se, acariciam-se, emergem tão carregadas de imantação que a seu redor os vocábulos são coagidos a constelar-se, de forma a fazer com que o poema seja:
Sei que serei aquele que convence o
Espanto das estrelas que desmaiam
E acordam transformadas em silêncio.
Trata-se de um poeta raro em nosso tempo, o poeta inspirado, o poeta cósmico, o vidente, o intuitivo que, ensina Maritain, “dá imediatamente livre passagem à intuição criadora nascida nas profundezas da alma”. Numa época em que se nega a alma e em que se recusa à poesia o direito de nascer das profundezas, sua obra necessariamente constitui um bloco indecifrado, um enigma cuja pureza intocada na mente dos leitores que ousam acercar-se dos
Tetos que vão fugindo, onde não credes
Possam viver lanternas de granito,
Luzes astrais surgidas de outro mito
Pescado nas escamas de outras redes.
É efetivamente nessa planície de inspiração essencialmente receptiva, inexplorada e secreta, na qual vigem os arquétipos, os mitos, as musas e os deuses, que o poeta respiga. A noturnidade dos sóis, a inconstância das naves, os rios soterrados, o segredo do pássaro, a senha do canto, a idéia do cristal, a névoa que molha os dedos, as letras mortas que rolam pelo vento, o som das rosas aí vicejam, captados pela sonda lançada ao abismo em que o poema se elabora mediado pelo “vate”.
É no Undgrund descoberto pela mística renana, reencontrado pelo romantismo de Iena, fonte de toda a metafísica germânica, de Fichte e Shelling a Hegel e a Heidegger, que se estabelece o acordo do homem e do mundo, do microcosmo e do macrocosmo. É nesse abismo que se organizam e tecem os versos do nosso poeta, o solitário poeta que ousa discernir
Onde fomos forjados. Onde a sede
E a fome vaticinam sobre as lavras
Que somos; quando alguém atira a rede,
E nós, demônios, peixes e suicidas,
Penetramos por meio de palavras
Aquele que recolhe nossas vidas.
Há uma poesia que se define pela clareza, pelas estruturas lingüísticas, pelo construtivismo meridiano, pela volição racional; há outra que se distingue pelo que há nela engajado, de reivindicativo, de clamor. Nem a uma nem a outra pertence a criação poética de Paulo Bomfim, criação que dificilmente se deixa catalogar, isto é, arquivar: criação cuja essência vem sendo submissa tão-só à liberdade que ela própria engendra. Sua voz emerge de outra fonte, uma fonte mais límpida mas também mais árdua, e para localizá-la, o vedor, o soucier deve munir-se de instrumentos muito mais sutis do que os da mera análise técnica. A poesia de Paulo Bomfim cresce e floresce na vizinhança da palavra que afirma:
O pensamento executa a relação do Ser à essência do homem. Não constitui nem produz por si mesmo esta relação. O Pensamento expõe somente ao Ser aquilo que é entregue a si mesmo pelo Ser. Essa oferenda consiste nisto: no pensamento o Ser acede à linguagem. A linguagem é a morada do Ser. Em seu abrigo o homem habita. Os pensadores e os poetas são guardiães desse abrigo. Sua guarda é o cumprimento da revelabilidade do Ser, na medida em que por seu dizer eles fazem aceder à linguagem essa revelabilidade, e o conservam na linguagem.
Esta palavra, de obscuridade heraclitiana, profere-a o mais alto pensador de nosso tempo, Martin Heidegger, filósofo que, muito acercado do mistério poético, sabe revelá-lo com a nitidez que o conceptualismo dos cientistas da liguagem não atinge. Porque a poesia não é um problema que possa ser dirimido pela lingüística: a poesia é desvelamento do mistério ontológico. E é justamente de imagens ontológicas que a criação de Paulo Bomfim está plena: “A gôndola do verbo, indecifrável sobre as águas do ser”. “A morte apenas fecha os olhos dos que sempre estiveram mortos”. “Ao cruzar um rio cortamos o pensamento de um deus”. “Um nunca sobre o sempre que se inventa...”
Em seus poemas, é preciso dizê-lo com ênfase que não encontrará justificativa em muitas obras da poesia brasileira contemporânea, executa-se com simplicidade absoluta o ato que parece ser o cerne mesmo da criação poética: torna-nos presente aquilo que neles se encontra revelado. Isto significa que não acenam a nenhuma realidade além daquela que no seu emergir se desvenda:
Invento este soneto onde procuro
Surgir de um ventre de palavras novas,
Nascer de mim, de ti, de tantas provas
Que me iniciam como um deus futuro.
Modelo sensações num mundo escuro
Onde semeio o corpo pelas covas,
Berços de terra, fonte onde renovas
As vidas que guardaste com meu muro.
Enquanto pelo céu as grandes naves
Vão sangrando de azul as descobertas
E os anjos vão ficando inda mais graves.
Invento este soneto de granizo,
Ferindo em minhas folhas entreabertas,
O caos que se transforma num sorriso.
É no interstício entre o mundo inefável e o mundo da linguagem que o poeta se insere, e, graças à alquimia do verbo, opera transferência de uma realidade de silêncio a uma realidade expressiva. A poesia de Paulo Bomfim é a de um “trapezista mudo” que pode afirmar: “O livro que hoje escrevo foi escrito / em outro plano estático e diverso”. Não se ilude o poeta sobre a realidade que o assalta de todos os lados, como assaltou a outro vate pertencente também a seu hemisfério, Jorge de Lima. Não são suas mãos que escrevem o poema, o poema é que se escreve a si mesmo através de suas mãos:
Passam por mim as forças que se enfeixam
No cerne de estaleiros e dos atos:
− Não construo estas naus, elas me deixam!
A coerência interior com que esta criação emerge ao nível da escrita faz pressupor em seu responsável uma entrega incondicional às vozes interiores, pois nada existe menos fabricado, polido, aperfeiçoado, construído, do que os poemas de Paulo Bomfim, sobretudo nesta vasta porção de sua obra, composta pelos sonetos. Embora a afirmativa pareça paradoxal, é de fato no poema de forma fixa que o poeta revela mais patentemente a ausência de qualquer preocupação formal em sua criação. Os decassílabos afloram à ponta dos dedos de um só fluxo, articulando-se nos abismos interiores, em cujos meandros uma arcaica postulação pelo ritmo preside inconscientemente seu elaborar-se. Escrita pré-lógica que ostenta todos os caracteres da escrita automática dos surrealistas: nela, porém, não se inscreve a ambigüidade das imagens, desconexas, arbitrárias, explosivas e incoerentes. As metáforas, as alegorias, os símbolos, os mitos com que a poesia de Paulo Bomfim nos acena jazem numa camada talvez mais profunda do inconsciente, nas raízes de um relacionamento do homem com o mundo que é privilégio do princípio encantatório do verso ritmando a ação. Os sonetos do poeta − “haste e corola nos fins do sonho / marcando de infinito a cor do muro” − constituem um caso originalíssimo em nossa literatura, não só pelo conteúdo onírico que neles se encobre, mas em virtude da unidade que faz seu autor − um poeta que não se pertence − exprimir-se através deles: dócil à voz secreta que não é a sua, fala todavia com sua própria voz. É que cada poema seu é um ato de amor, e, como ensina Patrice de La Tour du Pin, “tu peux tout concevoir em um instant d’amour”.
Criação que ascende inconsútil dos abismos interiores, conhecimento informulável e incomunicável racionalmente, em consequência assimilável aos mantras − palavras que revelam −, a poesia de Paulo Bomfim deixa-se levar pelo movimento da fonação, escandindo-se segundo um jogo rítmico de timbres que se articula preferencialmente em decassílabos, mas que também assume, quando a tensão força forma insuportável as comportas, o esquema do heptassílabo, a redondilha maior. Nesses momentos a tensão se adensa, porque neles, mais do que na longa teoria dos sonetos, o poeta se metamorfoseia no instrumento pelo qual fluem vozes antiqüíssimas, estruturas pré-conscientes e arcaicas, assomando ao nível do verso operações em que está em jogo o destino da linguagem, e por isso mesmo se aproximam do sacral. É necessário que a corda, muito tensa, percuta no espaço com a concisão das litanias.
Nessa linha de reflexões que procura desvendar, embora perfeitamente, certas constantes de uma obra desafiadora e ainda não codificada, a trilogia composta por “Das Amadas Ancestrais”, “Eva Lilith”, “Do País do Vir-a-Ser”, revela-se como detentora da palavra eficaz, que diz de uma vez por todas, pois é emitida por um mago.
Estranhamente enlaçam-se nos poemas invocações de uma sensualidade que aspira à plenitude, evocações a sibilas cuja ancestralidade crônica vai diluir-se no mundo dos arquétipos, metáforas cuja órbita se inscreve no espaço numinoso dos mitos.
É da fusão dos metais nessas temperaturas elevadíssimas que surge ao longo dos poemas a cintilação do aurum purum. Nos arcanos da alquimia assimila-se ele ao verbo privilegiado dos poetas − dos Vates.
Nogueira Moutinho
São Paulo, junho 1973.