O DIREITO DE SER POETA
Um poeta surge, novíssimo na idade e na poesia. É Paulo Bomfim. Ora, quis a sua magnanimidade de moço que eu dissesse o “Abre-te, Sésamo!” ante o pórtico desse palácio de sonho. E aqui vão as minhas palavras de pura sinceridade.
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Nem apresentação, nem prefácio.
Deus me livre do cicerone que explica; do programa de cinema que conta a fita! São os desencantadores; os indesejáveis destruidores do inesperado, do inédito, do imprevisto. Fazem saber: e o que a gente quer é imaginar, ou, quando muito, adivinhar.
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Nem apresentação, nem prefácio.
Apenas uma saudação.
Quero saudar, no livrinho de estréia de Paulo Bomfim, a minha, a nossa cidade feita poesia.
Nasceram juntos e estão crescendo juntos: o poeta novo e o Novo São Paulo.
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Penso no progresso materialista que despoetizou São Paulo; e nos versos de Paulo Bomfim, que tentam poetizar de novo a cidade reconstruída. E digo, sem querer: São Paulo, por alcunha, “Antônio Triste”.
Há, sem dúvida, uma predestinada justaposição da poesia deste adolescente com a cidade que a inspirou. Justaposição de sentido, de valores, de destino, de tudo.
São Paulo é uma cidade solta no mundo, que tem caminhado pelo Tempo, ao acaso, sempre provisória, sem plano urbanístico preestabelecido, formando-se ao capricho das improvisações, das necessidades do momento, das fantasias da iniciativa particular.
E pela cidade repentista caminha o boêmio adolescente, apaixonado pela aventura de rua, pela surpresa das esquinas, pelo mistério das fachadas, pelo segredo dos bancos de jardim, pelo romance das árvores, pelo idílio das luzes, pela conspiração da garoa, pelo diálogo silencioso das estátuas e dos cartazes...
E vai assim a poesia do menino paulistano, toda feita de acaso, como a sua cidade. A inspiração, a idéia, a métrica, o ritmo, a rima, as audácias mesmo, as próprias libertações do verso − são casualidades. “Antônio Triste” percorre todas as incongruências de são Paulo. Aqui, é
“esguio como um poste da Avenida,
cheio de fios e de pensamentos”...
Ali adiante, encontra “Maria Felicidade”, que passa.
“Seu sangue era o mesmo sangue
dos anúncios luminosos;
seus olhos da cor do asfalto durante os tempo chuvosos.
Maria Felicidade,
Princesa feita de barro,
Tinha nos olhos tristeza
Tinha na boca um cigarro”...
Mais adiante, pára numa esquina noturna; e, pensativo, fica anotando, um soneto sem rimas:
“Pela cidade quieta e adormecida,
os letreiros de luz avermelhada
jogam beijos vermelhos à neblina
que paira sem destino pelas ruas.
Um vulto passa assobiando um tango,
beirando os frios prédios de cimento:
é uma cigarra boêmia e independente
a contornar os altos formigueiros.
São já cinco horas; e o colar de luzes
que cerca o asfalto negro, luzidio,
de súbito enfraquece e desfalece.
Dentro da noite, uma buzina berra,
aqui e ali, num berro doloroso,
as angústias noturnas da cidade”...
E, como já é clara manhã, “Antônio Triste” detém-se, por momentos, ante um tapume que esconde o embrião de um arranha-céu; e ali fica improvisando o mais autêntico poema do mais autêntico São Paulo de hoje:
“Batem estacas no terreno morto,
no terreno morto surge vida nova.
As goiabeiras do velho parque
e os reseirais abandonados
serão cortados
e derrubados.
Um prédio novo de dez andares,
frio e cinzento,
terá seu corpo de cimento-armado
enraizado no velho parque
de goiabeiras,
de roseirais.
Batem estacas no terreno morto.
Século vinte.
Vida de aço.
Cimento-armado!
Batem estacas.
Um prédio novo de dez andares,
terraços tristes,
pássaros presos,
rosas suspensas,
flores da vida,
rosas de dor”...
Mas, sob essa massa bruta de pedra, concreto, ferro, asfalto e dinheiro, a cidade pensa e sofre. E desse pensamento e desse sofrimento brotam duas flores-de-altura da poesia moderna. Esta:
TRÊS VIDAS
“Neste momento imenso e misterioso,
nesta fração de tempo que caminha
para repouso de toda hora extinta,
uma estrela mergulhou em algum ponto no Infinito,
uma onda rebentou em algum rochedo solitário,
e uma mulher morreu em algum lugar na terra.
Passou dentro de mim neste momento
Uma revolta imensa contra tudo:
três mortes não lembradas,
uma estrela que morreu,
uma onda que se desfez em espuma
e uma mulher, quem sabe a única
mulher dentre as mulheres deste mundo,
que procurei por tanto tempo em vão!
Três vidas se extinguiram neste instante
em algum lugar do espaço...
Uma estrela,
uma onda,
uma mulher!”
E esta outra:
POEMA TRISTE
“Foi numa rua abandonada e triste
que existe em todo o mundo, em toda terra.
Teu olhar dizia − Dó
Meus olhos falavam − Só.
Abriste aquela rótula esverdeada,
pegaste-me nas mãos, deste-me um beijo.
E aquele quarto abandonado
ainda hoje se reflete triste
em meu passado.
Aquele tango amargo que cantavas,
as garrafas loirinhas de cerveja,
dois vagalumes,
dois cigarros
unidos um ao outro como irmãos.
Teu olhar dizia − Dó
Meus olhos falavam − Só.
Mal sabes tu, passado tanto tempo,
que ias ser mãe de sonhos e poesias,
que o nosso amor se uniu nalguma estrofe
e o teu ventre infecundo abortou um poema”...
*
Este é um poeta de verdade. Um poeta novo à moda antiga. Porque ainda “sabe” a poesia. Feito à imagem e semelhança da cidade em que vive, há de ser grande como São Paulo. Tem tudo para isso: tem tradição, tem inteligência, tem sonho, tem mocidade, tem convicção, tem vontade. Tem o direito de ser poeta...
E eu tenho a gloria de saudar em Paulo Bomfim o novo poeta mais profundamente significativo da nova cidade de São Paulo.
São Paulo, setembro, 15, 1946.
Guilherme de Almeida