Quando Antonio Batista Pereira faleceu, fui com Guilherme de Almeida a seu velório na cripta da Igreja de Santa Cecília.
Ao contemplar o amigo adormecido entre flores e lembranças, Guilherme segura-me no braço dizendo: - “Que desperdício! Tanta inteligência, tanta cultura, tanta generosidade, e tudo perdido!”
Batista Pereira fascinou minha mocidade. Fomos íntimos, eu com a pretensão dos trinta anos, ele com a sabedoria de seus oitenta.
Cultuou o passado, e na galeria de suas devoções destacou as figuras de Dona Veridiana, de Eduardo Prado, de Rio Branco e de Rui Barbosa. A fidelidade do genro à memória do sogro é algo a ser lembrado. Acompanhou Rui em Haya, em Buenos Aires, em suas lutas, em suas glórias, nos sofrimentos, na alegria, no vôo da águia e na convivência diária do homem com a família, com os livros, com a simplicidade. Batista Pereira, falando e escrevendo, ombreia-se com seu ídolo. O historiador demarcou veredas inaugurais, audaciosamente percorrendo os Peabirus de uma documentação desconhecida. Contou-me a jornada a pé, que ele, Julio de Mesquita Filho e Paulo Duarte realizaram de São Paulo a Santos na busca de primitivos caminhos. Seu coração gaúcho palpitou de amor por Piratininga. Em 32, durante a campanha do “Ouro para o bem de São Paulo” entrega as alianças de casamento de Rui Barbosa dizendo que sua sogra ordenara: -“Antonio, leve nossas alianças para a causa da lei e da liberdade. Rui, se fosse vivo, estaria com São Paulo”. Ao final da Revolução, Batista Pereira seria prisioneiro da ditadura, na Sala da Capela, título de um de seus livros.
Amigo de Sarah Bernhardt, de Kipling, de Anatolle France, personificou a Belle Époque. Legou-me cartas, documentos e livros que não cheguei a receber. Ficaram muitos anos encaixotados e acabaram destruídos por insetos e umidade.
O mapa que fez dos primitivos fogos quinhentistas, as pesquisas sobre os muros protetores de nossa aldeia, “Vultos e Episódios do Brasil”, “Eduardo Prado, o escritor e o homem”, “O Brasil e a Raça”, “Civilização contra barbárie”, “Figuras do Império”, “Formação espiritual do Brasil”, marcam a trajetória de cidadão do mundo que ingressou no Itamaraty a convite do Barão do Rio Branco.
A jovialidade do homem de oitenta anos encantava os moços que freqüentavam minha casa na Avenida Ipiranga, onde semanalmente ia jantar.
Suas intuições sobre o Brasil pré-cabralino, voltam hoje a ser discutidas. Disse-me certa feita, num tom que escondia jocosidade e algo muito sério:
- A barca dos mortos, no tempo dos faraós, saía do Egito e aportava na Baía de Guanabara. O caminho mítico que os colonizadores encontraram, com pegadas impressas na rocha, não era de Tomé e sim de Tutmés.
Depois, olha para mim e pergunta:
- Com quem estou parecido?
Não tenho coragem de dizer. Volta a carga e me desafia:
- Vamos, fale com que eu me pareço agora, no fim da vida?
Respondo finalmente:
- Com a múmia de Ramsés.
Batista sorri.
Quando estava muito doente fui vê-lo no hospital. Encontro o quarto vazio. Indago por seu ocupante, pressentindo o pior. A enfermeira me diz:
- Ele saiu escondido e foi cortar o cabelo e fazer a barba, no Automovel Club.
Volto novamente para visitá-lo. Vou acompanhado de seu filho Paulo. Vendo-nos chegar indaga:
- O que vieram fazer aqui hoje? Eu faleci ontem!
No dia seguinte o telefone soa como um dobre de sino. A sala onde recebo a notícia, em “A Gazeta”, subitamente é invadida por suave perfume de água de colônia. Isabel e Bráulio, meus assessores, entreolham-se perplexos. Na hora em que desligo o telefone, o cheiro da água de colônia que Batista Pereira usava, desaparece!