Nejar, Carlos.
História da literatura brasileira: da Carta de Caminha aos contemporâneos.
São Paulo: Leya, 2011, 2ª edição.

“Paulo Bomfim ou a ciência da nuvem
Extraordinário sonetista, a provar que o soneto só morre de frio, entre as cinzas, e sempre renasce com as brasas. Poeta de sotaque próprio, seus decassílabos mergulham entre signos e alegorias, nas galerias obscuras do mito, onde a coerência das imagens se combina dentro do fundo bosque de espelhos, o poema. E ali vai a cantiga de amor e seguem juntos “o vôo do silêncio e as grandes falas” (Bomfim, Paulo. Praia de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992).

Simplicidade? Memória das palavras. E nelas apenas a poesia é capaz de flutuar. O acessório: engolido. Paulo Bomfim é o autor de Antônio triste (1947), com um romantismo inicial já gasto, e que pela imaginação foi levado, ou deixou-se ludicamente levar a uma fome de infância, que se sacia nas regiões do mito.

Mesmo, em regra, utilizando a forma fixa (o soneto), não é a forma que o domina, mas é o vôo que o clarifica e liberta. Teve a reunião de sua obra, em 50 anos de poesia (1998), mais O livro de sonetos (2006), obtendo sucesso de público.

Arreda-se da tendência parnasiana geracional, por obedecer às vozes que carrega, ou que o carregam no gibão da foz, num sentimento que cristaliza a linguagem, disparando num canto mais antigo, onde ainda volta a inocência, que jamais será formal. E o soneto é destilado em lume − romântico com a musicalidade e a imagética simbolista. Um vento novo no que parece velho. Tal vinho de fina casta na cantina. Não seria a ciência de a nuvem não se atar ao rechedo?

Diz no Soneto I, de Transfiguração:

Venho de longe, trago pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados...
Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

E quando nos fixávamos no sonetista de sabor imprevisto, com léguas de perícia verbal, nos surpreendemos com Navegante (2007), em que emerge um “Poeta do Movimento” (Amaral Gurgel), na qual cintilantes aforismos e versos em mágica esfera se revezam. Com metáforas ou jogos de engenho, humor, ideogramas sonoros, trilhas sonâmbulas, lenços de prosa e poema, telegramas de azuis olhos-vocábulos, “depósitos extraviados de sonhos”. De um lado se originam do impressionismo francês e, de outro, possuem um pouco da montagem joyciana.

Esses aforismos de Paulo Bomfim são consangüíneos das Gregueirías, do espanhol Ramón Gómez de la Serna, que, “menino, escrevia o arco-íris”. Ou das máximas do lusitano Teixeira de Pascoais. É um dialeto de espelhos que não envelhecem.

Tendo reflexos ou gotas de inefável claridade: “Na palma da mão a semente faz brotar o dia [...] As almas também se reproduzem... Pessoas e casas devem ser habitáveis [...] No dilúvio da noite, a arca de teu corpo [...] A noite são corpos que se encontram [...] Eternos, pertencemos, contudo, à estirpe de rios! [...]” E estes textos têm música, harpas de pomar. E há que provar estes porões atordoados de infância. Por voltarem sempre à tona.”